Novas perspectivas
Em consonância com as direções indicadas pela legislação na área,
especialmente pelo PNE, observa-se que algumas políticas recentes vêm
convergindo para a redefinição e o fortalecimento do ensino de nível médio.
Entre elas, ressaltam-se: a aprovação e a implantação do Fundo de Manutenção e
Desenvolvimento da Educação Básica e de Valorização dos Profissionais da
Educação (FUNDEB), por meio da emenda constitucional n. 53/06, seguida da lei
n. 11.494/07, incorporado ao Plano de Desenvolvimento da Educação (PDE),
apresentado no mesmo ano pelo governo federal, juntamente com outras ações que
abrangem não só a educação básica, mas também o ensino superior.
O FUNDEB, ao garantir um financiamento específico para todas as etapas
da educação básica, inclusive o ensino médio, de acordo com o número de alunos
matriculados nas respectivas redes de ensino, pode representar uma nova
possibilidade de expansão desse nível, em direção à sua universalização. Entre
as outras ações do PDE, mencionam-se o Programa Brasil Profissionalizado, por
meio do decreto n. 6.302/07, que visa fomentar a oferta do ensino médio
integrado à educação profissional, permitindo a inserção profissional no
mercado de trabalho, com estágio supervisionado, e fortalecer as redes estaduais
de ensino na oferta de educação profissional de nível médio, por meio de um
programa de assistência técnica e de financiamento.
Definidas tais políticas no âmbito da melhoria das condições financeiras
e de infraesturutura do ensino médio, compreende-se a valorização, a reflexão e
a difusão de experiências que estejam direcionadas a construir, para esse nível
de ensino, uma nova concepção e uma nova organização curriculares, mais atentas
às mudanças em nossa sociedade e às demandas de seu público diversificado.
Nesse
sentido, a fim de colaborar com a consolidação das políticas de fortalecimento
do ensino médio, especialmente em termos da melhoria de sua qualidade, da
superação das desigualdades de oportunidades e da universalização do acesso e
da permanência, o Ministério da Educação apresentou, em 2009, o Programa do
Ensino Médio Inovador, de apoio técnico e financeiro aos estados. Seu objetivo
central é superar a dualidade do ensino médio, definindo-lhe uma nova
identidade integrada, na qual se incorporem seu caráter propedêutico e seu
caráter de preparo para o trabalho.
Quer-se estimular a reorganização curricular da escola, de modo a
superar a fragmentação do conhecimento, reforçando-se a flexibilização do
currículo e desenvolvendo uma articulação interdisciplinar, por áreas de
conhecimento, com atividades integradoras definidas com base nos quatro eixos
constitutivos do ensino médio – trabalho, ciência, tecnologia e cultura. Desse
modo, propõe-se um currículo organizado não apenas em torno de disciplinas, mas
também de ações, situações e tempos diversos, assim como de espaços intra e extraescolares,
para realização de atividades que favoreçam a iniciativa, a autonomia e o
protagonismo social dos jovens.
O Programa quer promover o desenvolvimento de inovações pedagógicas das
escolas públicas, de modo a fomentar mudanças necessárias na estrutura
curricular dessa etapa educacional, bem como o reconhecimento da singularidade
dos sujeitos a que tende. Desse modo, foram definidas algumas condições
iniciais básicas para orientar os projetos das escolas:
a) Carga
horária mínima de três mil horas;
b) Centralidade
na leitura como elemento basilar de todas as disciplinas, privilegiando-se,
nessa prática, a utilização e a elaboração de materiais motivadores, assim como
a orientação docente;
c) Estímulo
às atividades teórico-práticas desdobradas em laboratórios de ciências,
matemática e outros que apoiem processos de aprendizagem nas diferentes áreas
do conhecimento;
d) Fomento de
atividades de artes para promover a ampliação do universo cultural do aluno;
e) Mínimo de
20% da carga horária total do curso em atividades optativas e disciplinas
eletivas a serem escolhidas pelos estudantes;
f) Atividade
docente com dedicação exclusiva à escola;
g) Projeto
Político-Pedagógico implementado com a participação efetiva da comunidade
escolar e organização curricular articulada com os exames do Sistema Nacional
de Avaliação do Ensino Médio.
Em síntese, o Programa Ensino Médio Inovador (2009) expressa a
preocupação do Ministério da Educação em responder às mudanças ocorridas ao
longo das últimas décadas nesse nível de ensino e sugere a urgência de se
repensar sua proposta curricular, tornando-a adequada à singularidade do
alunado, de forma comprometida com as múltiplas necessidades sociais e
culturais da população brasileira.
Outra política recente do MEC que merece ser registrada são as
alterações feitas no Exame Nacional do Ensino Médio (ENEM). Por meio da
Portaria n. 109/2009, o ENEM tem seus objetivos ampliados, conforme consta do
art. 2o.:
I – oferecer
uma referência para que cada cidadão possa proceder à sua autoavaliação com
vistas às suas escolhas futuras, tanto em relação ao mundo do trabalho quanto
em relação à continuidade de estudos;
II –
estruturar uma avaliação ao final da educação básica que sirva como modalidade
alternativa ou complementar aos processos de seleção nos diferentes setores do
mundo do trabalho;
III –
estruturar uma avaliação ao final da educação básica que sirva como modalidade
alternativa ou complementar a processos seletivos de acesso aos cursos de
educação profissional e tecnológica posteriores ao ensino médio e à educação
superior;
IV –
possibilitar a participação e criar condições de acesso a programas
governamentais;
V – promover
a certificação de jovens e adultos no nível de conclusão do ensino médio nos
termos do art. 38, §§ 1º e 2º da lei n. 9.394/96 (LDB);
VI – promover
avaliação do desempenho acadêmico das escolas de ensino médio, de forma que
cada unidade escolar receba o resultado global;
VII –
promover avaliação do desempenho acadêmico dos estudantes ingressantes nas
instituições de educação superior.
O ENEM assume, desse modo, as funções de: a) avaliação sistêmica, ao
subsidiar a formulação de políticas públicas; b) avaliação certificatória, ao
aferir conhecimentos para aqueles que estavam fora da escola; c) avaliação
classificatória, em relação ao acesso ao ensino superior, ao difundir-se como
mecanismo de seleção entre as instituições de ensino superior, articulado agora
também ao Sistema Unificado de Seleção (SISU).
Diante dessa reconfiguração do exame e da expansão do número de
inscritos, cabe observar o impacto dessa política da definição do currículo
efetivamente em vigência nas escolas de ensino médio no país.
O DEBATE EM TORNO DAS DIRETRIZES CURRICULARES
NACIONAIS DO ENSINO MÉDIO – 1998
No contexto brasileiro da década de 1990, os debates na área educacional
foram marcados por uma nítida polarização entre defensores e críticos das
reformas políticas e econômicas implementadas pelo governo Fernando Henrique
Cardoso (FHC).
Predominaram, nesse momento, estudos que privilegiavam abordagens
teóricas macroeconômicas e análises estruturais que buscavam revelar a sintonia
existente entre as medidas adotadas pelo governo no país e as orientações de
organismos multilaterais, como Banco Internacional de Reconstrução e
Desenvolvimento (BIRD), o Fundo Monetário Internacional (FMI) e Banco
Interamericano de Desenvolvimento (BID), entre outros. Nesse cenário, as DCNEM
e, posteriormente, os Parâmetros Curriculares Nacionais do Ensino Médio, são
identificados como parte dessa reforma do ensino médio e criticados,
principalmente, por seguirem a mesma direção e pressupostos da reforma da
educação e do Estado realizadas no Brasil nos anos 1990, fortemente marcados
pelo ideário neoliberal (cf. Bueno, 2000; Cunha, 2000; Frigotto e Ciavatta,
2002; Ferretti e Silva Jr., 1998; Kuenzer, 1997, 2000, 2001; Martins, 2000).
O objetivo central da maioria das análises desenvolvidas acerca das
DCNEM de 1998 era desvendar o caráter ideológico do discurso oficial e as
contradições entre a visão de ensino médio presente nas diretrizes e as demais
políticas colocadas em prática pelo governo (cf. Kuenzer, 2000; Bueno, 2000;
Domingues et al., 2000).
À primeira vista, as diretrizes traziam um discurso sedutor e inovador,
por meio da valorização de uma concepção de “educação para a vida e não mais
apenas para o trabalho”; da defesa de um ensino médio unificado, integrando a
formação técnica e a científica, o saber fazer e o saber pensar, superando a
dualidade histórica desse nível de ensino; de um currículo mais flexível e
adaptado à realidade do aluno e às demandas sociais; de modo contextualizado e
interdisciplinar; baseado em competências e habilidades.
Contudo, ao analisar-se o contexto mais amplo das políticas para o
ensino médio em curso à época, o que se percebia era uma realidade muito
distinta daquela proposta pelas diretrizes. Além disso, após um estudo mais
detalhado do discurso presente nas DCNEM, o que se percebia era um texto
híbrido que, em vários momentos, acabava por ressignificar certos termos a tal
ponto destes assumirem sentidos quase que opostos aos originais.
Em termos do referencial teórico-metodológico, além das análises macroestruturais,
que faziam uso de um quadro teórico marxista, particularmente gramsciano, nos
estudos realizados sobre o discurso explícito e implícito nas diretrizes também
se identificam metodologias de análise de conteúdo, tomando como referência
principal os trabalhos de Laurence Bardin (1977). Vale mencionar, contudo, o
número ainda reduzido de pesquisas empíricas que se propuseram a acompanhar a
efetiva implementação das diretrizes, tanto nos sistemas de ensino quanto nas
escolas (cf. Zibas, 2005b).
Dentre as principais críticas realizadas às DCNEM, nesse conjunto de
pesquisas realizadas sobre o tema, ressaltam-se três delas, identificadas como
as mais recorrentes: a) a subordinação da educação ao mercado, ressignificando
conceitos como flexibilização, autonomia e descentralização;
b) a
permanência da separação entre formação geral e formação para o trabalho;
c) o poder de
indução relativamente limitado das diretrizes.
Como afirmado anteriormente, um dos principais objetivos dos estudos
realizados sobre as DCNEM aprovadas ao final da década de 1990 foi explicitar a
real intenção do governo com as reformas adotadas para a educação. Dentro de um
contexto de reforma do Estado, cujas políticas pretendiam torná-lo mais enxuto
em termos de suas responsabilidades sociais e mais permeável às parcerias com a
iniciativa privada, o que se observou foram mudanças propostas para a área da
educação que acabaram por subordinar esta à lógica econômica e às demandas do
mercado de trabalho. Particularmente no caso do ensino médio e das diretrizes
propostas para esse nível de ensino, isso pode ser percebido no discurso que
enfatiza a necessidade de um currículo cada vez mais flexível, para se adequar
a um mundo produtivo em constante transformação e cada vez mais instável, que
agora demanda uma qualificação para a “vida”: “[...] preparar para a vida
significava desenvolver competências genéricas e flexíveis, de modo que as
pessoas pudessem se adaptar facilmente às incertezas do mundo contemporâneo”
(Ramos, 2004, p. 39).
Desse modo, conceitos como flexibilidade, autonomia e descentralização,
construídos no campo educacional como formas de emancipação e construção de uma
consciência crítica, são ressignificados nesse novo contexto: [...] nas
reformas dos sistemas de ensino aparecem conceitos e propostas tais como
descentralização; autonomia dos centros escolares; flexibilidade dos programas
escolares; liberdade de escolha de instituições docentes; necessidade de
formação continuada; superação do conhecimento fragmentado
[...].
Esses conceitos encontram correspondência nas características da reorganização
do mundo produtivo: na descentralização das grandes corporações industriais; na
autonomia relativa de cada fábrica em decorrência do processo de
desterritorialização das unidades de produção e/ou de montagem; na
flexibilidade da organização produtiva para se ajustar à variabilidade de
mercados e de consumidores. (Santomé, 1998, p. 21 apud Martins, 2000, p. 72)
Tais conceitos são criticados nas DCNEM, particularmente, por serem
associados à proposta de um currículo baseado em competências e habilidades, o
que reforçaria a subordinação da educação às demandas do mundo do trabalho, que
passa a exigir um trabalhador polivalente responsável por sua própria
empregabilidade:
Há um
privilégio [nas DCNEM] conferido ao discurso das competências e à possibilidade
de avaliação constante dos sujeitos sociais: os saberes são mobilizados visando
à formação de desempenho e sua expressão em um saber-fazer. [...] Tem-se a
valorização do desempenho, do resultado e da eficiência social (desenvolver
competências é estar apto a se inserir de forma eficiente no mercado de
trabalho). [...]
Com o
slogan de que a “escola agora é para a vida”, reduz-se vida ao atendimento das
exigências do trabalho no mundo globalizado, ao contexto no qual são aplicadas
as competências. (Lopes, 2004a, p. 199-200)
Outro aspecto muito analisado nos estudos sobre as DCNEM diz respeito à
própria concepção de ensino médio presente no documento, particularmente no que
se refere à possibilidade de um currículo integrado, que supere a dualidade
entre uma formação para a continuidade dos estudos e uma formação para o
trabalho, debate que marcou a história desse nível de ensino no Brasil.
Observou-se, nesse sentido, que o discurso oficial presente no parecer e
na resolução que estabelece as DCNEM anuncia o fim dessa separação, reforçando
a ideia de um currículo comum que abrangeria uma formação básica e a preparação
para o trabalho, compreendendo esta como algo mais amplo do que educação
profissional:
Artigo 12 - Não
haverá dissociação entre a formação geral e a preparação básica para o
trabalho, nem esta última se confundirá com a formação profissional.
§ 1º A
preparação básica para o trabalho deverá estar presente tanto na base nacional
comum como na parte diversificada.
§ 2º O ensino
médio, atendida a formação geral, incluindo a preparação básica para o
trabalho, poderá preparar para o exercício de profissões técnicas, por
articulação com a educação profissional, mantida a independência entre os
cursos. (Brasil, 1998a)
Contudo, as pesquisas na área criticam duramente essa suposta ruptura da
dualidade do ensino médio propalada pelas DCNEM. Por um lado, questiona-se a
noção de trabalho presente nas diretrizes; por outro, observa-se a contradição
entre o discurso presente na lei e as práticas políticas do governo federal
para o ensino médio.
No primeiro caso, parte-se da defesa de um projeto unitário para o
ensino médio, superando a disputa com a educação profissional, que deveria ser
integrada a esse nível de ensino, para se criticar a forma como o trabalho é
definido no texto das diretrizes. Observa-se que há uma oscilação nas DCNEM
“entre trabalho como princípio e trabalho como contexto; trabalho como mediação
e trabalho como fim; trabalho como práxis humana e trabalho como práxis
produtiva” (Ramos, 2004, p. 41). Desse modo, em vez de se superar a dicotomia
entre ensino propedêutico e ensino profissionalizante, o que as diretrizes
fazem é reduzir a concepção geral de trabalho a uma função utilitária, onde
este é assumido como princípio educativo na perspectiva do capital e não do
trabalhador (idem, p. 42).
Outro questionamento se refere ao contexto no qual são aprovadas as
DCNEM, em especial ao impacto do decreto n. 2.208/97 para a organização
curricular do ensino médio. Analisando o discurso oficial presente nas
diretrizes, percebe-se que estas reforçam a visão de ensino médio também
presente na lei n. 9.394/96, ao estabelecer a especificidade desse nível de
ensino, construída em torno de um núcleo comum a todos, ao mesmo tempo em que
permitem uma diversificação, em possível articulação com a educação
profissional. Contudo, esse discurso contrasta com a orientação dada pelo
decreto n. 2.208/97, que separa novamente o ensino médio da educação
profissional, ao estabelecer trajetórias distintas e independentes para ambos,
reforçando assim a dualidade que se dizia superada (cf. Martins, 2000;
Frigotto; Ciavatta, 2004).
Ainda em relação ao debate sobre a identidade do ensino médio, vale
ressaltar uma nova polarização que começou a se configurar nas críticas às
DCNEM de 1998, particularmente quando do início da primeira gestão do governo
Lula (2003-2006).
Essa nova discussão situa em outro patamar a defesa ou crítica a um
currículo nacional comum para o ensino médio: [...] de um lado, há uma defesa
muito firme de uma escola média que, mesmo respeitando as diferenças, tenha um
perfil universal, calcado nas proposições de Gramsci quanto à politecnia,
combinando ‘trabalho, ciência e cultura na sua prática e nos seus fundamentos científico-tecnológicos
e histórico-sociais’ (Frigotto; Ciavatta, 2004b, p.18) ou, dito de outra forma,
uma escola que garanta ‘o direito de acesso aos conhecimentos socialmente
construídos, tomados em sua historicidade, sobre uma base unitária que sintetize
humanismo e tecnologia’ (Ramos, 2004, p.41). [...]
A tal argumentação contrapõe-se outra concepção de currículo, que talvez
se possa identificar como “pós-moderna”, defendida na mesma coletânea por Lopes
(2004a), segundo a qual a validade universal de qualquer conhecimento
transmitido pela escola é uma falácia, uma vez que: É preciso sempre lembrar
que a própria ideia de universal é uma invenção humana, situada em determinado
momento histórico. O fato de um conhecimento ser considerado universal só se estabelece
porque existem pessoas e relações sociais aos quais essa universalidade
interessa.
Se a perspectiva atual é construir um outro projeto de educação e de
sociedade, penso ser preciso começar questionando os padrões “universais” de
conhecimento escolar até hoje instituídos (p. 203). Nessa abordagem, não há
possibilidade de um currículo nacional e, portanto, descarta-se o princípio da
escola unitária. Além disso, entendido como política cultural, o currículo deve
abordar o trabalho apenas como uma questão entre muitas outras (tais como:
gênero, sexualidade, juventude, violência, lazer etc.), deixando de ser o
princípio educativo por excelência proposto por Gramsci. (Zibas, 2005b, p.
1080-1082)
Para Zibas (2005b), tal debate traz à luz “diferenças teóricas e
político-ideológicas inconciliáveis”, explicitando divergências que não estavam
muito claras durante o governo de Fernando Henrique Cardoso (1995-2002), quando
as críticas às políticas desse governo aglutinavam grande parte da comunidade
acadêmica (cf. Zibas, 2005b, p. 1080). Neste novo debate que se instala, a
crítica à dualidade do ensino médio, construída pela oposição entre formação
geral e formação para o trabalho e a defesa de um currículo nacional unitário,
que teria no princípio do trabalho sua base comum, deixa de ser algo
consensual. Ao invés de um currículo único, reforça-se a importância de
trajetórias diversificadas no ensino médio, onde a formação técnica seria
apenas uma dentre outras possíveis trajetórias. Desse modo, da crítica à dualidade
no ensino médio, passou-se à defesa da multiplicidade e diversidade do
currículo disponível aos jovens nesse nível de ensino.
Por fim, um último ponto também recorrente nas críticas dirigidas às
DCNEM diz respeito ao seu efetivo alcance e poder de indução como política
curricular. Um primeiro aspecto observado nesse sentido abrange a distância
entre o discurso normativo e diretivo do Estado e as práticas efetivas dos
atores, responsáveis por operacionalizar as diretrizes nos sistemas de ensino e
nas escolas (cf. Martins, 2000). Qual o poder efetivo do governo central? Na
prática, o que se tem observado é que as políticas curriculares têm sido pouco
assimiladas nos sistemas de ensino estaduais e municipais e nas escolas
brasileiras:
No
Brasil, apesar da importância que os governos dão ao planejamento curricular, a
história tem demonstrado que, sucessivamente, as reformas “fracassam”. É o que
demonstra a maioria dos estudos acerca, por exemplo, das reformas de 1960 (lei
n.4.024/61) e 1970 (lei n. 5.692/71). Por que elas fracassaram? Será que os
mesmos equívocos se repetem na atual reforma do Ensino Médio? Naquelas, o
insucesso se deveu, basicamente, à ausência de financiamento do processo de
manutenção e investimento e à falta de uma política “agressiva” de formação de
professores e de recursos humanos em geral. Deveu-se também à ausência de uma
política de adequação do espaço e da infraestrutura pedagógica, além da
inexistência de uma política editorial que superasse o passado. (Domingues et
al., 2000, p. 64)
Como indicam os aspectos identificados no estudo citado anteriormente,
observa-se em geral uma falta de continuidade nas políticas curriculares
nacionais, que se caracterizariam mais como “programas de governo, isto é, com
início e fim determinados pelos mandatos. Falta tempo para sua implantação e
consolidação no espaço de um governo, acarretando descontinuidade
administrativa e pedagógica” (idem, ibidem).
Esse parece ser o caso também das DCNEM de 1998 e dos PCNEM de
1999.Ainda em relação ao poder indutivo das DCNEM, vale observar a questão
federativa e a liberdade de organização da educação atribuída aos estados e
municípios.
De acordo com a LDB de 1996, em seu artigo 9º., inciso IV, a União é
responsável, em articulação com os estados e municípios, pelo estabelecimento
de competências e diretrizes para a educação básica, que deverão orientar os
currículos e seus conteúdos mínimos. Na organização curricular das DCNEM, foram
reservados 25% da carga horária para que as escolas e/ou Secretarias de Educação
estaduais definissem os conteúdos a serem oferecidos para atender aos
interesses diversificados e inclinações de seus alunos. Há, em ambos os
documentos, a ideia de uma corresponsabilidade entre os entes federativos.
Contudo, essa divisão de competências nem sempre tem sido muito bem
equacionada. Além disso, a LDB reforça a ideia já presente na Constituição
Federal de 1988 da autonomia de concepções pedagógicas que se atribui às
escolas, o que limita a adoção de uma única concepção pedagógica em âmbito nacional,
como pretendiam os PCNs para o ensino fundamental (cf. Azanha, 1996).
NOVAS DIRETRIZES CURRICULARES PARA O ENSINO MÉDIO?
Duramente criticadas por grupos contrários às políticas do governo FHC,
novas diretrizes curriculares para o ensino médio já vinham sendo propostas
desde a aprovação das DCNEM em 1998. Contudo, tal debate se consolida e entra
na agenda do poder público com o início da gestão do governo Lula. Em 2003, a
Secretaria de Educação Média e Tecnológica (SEMTEC), do MEC, iniciou uma série
de discussões e consultas sobre o tema que culminou no Seminário Nacional
“Ensino Médio: Construção Política”, cujas principais discussões foram
publicadas em livro em fevereiro de 2004.
Posteriormente, a Secretaria de Educação Básica (SEB), da qual a educação
de nível médio passa a fazer parte, iniciou uma revisão dos PCNEM, consultando
diversos especialistas no assunto, o que culminou nas Orientações Curriculares
Nacionais para o Ensino Médio, publicadas em 2006. Em 2009, o Ministério da
Educação convidou um conjunto de especialistas para auxiliá-lo no processo de
revisão e atualização das
diretrizes
curriculares nacionais para a educação básica como um todo, incluindo o ensino
médio. Em 2010, o documento resultante desse trabalho foi apresentado pelo MEC
ao Conselho Nacional de Educação como base para o início da definição de novas
diretrizes para a área. Em julho de 2010, foram aprovadas as Diretrizes
Curriculares Nacionais para a Educação Básica (parecer CNE/CEB n. 7/2010 e
resolução CNE/CEB n. 4/2010) e, em maio de 2011, foi aprovado parecer
estabelecendo novas diretrizes curriculares especificamente para o ensino médio
(parecer CNE/CEB n. 5/2011).
Diante de todo esse processo de revisão das DCNEM, que novidades o
documento aprovado traz para a organização curricular do ensino médio no
Brasil? Quais as mudanças efetivamente propostas para esse nível de ensino?
Mais especificamente, que diálogo é possível identificar, no texto das novas
diretrizes, com as críticas que vinham sendo feitas ao antigo documento
aprovado em 1998?
Em termos da organização propriamente dita do ensino médio, as
DCNEM-2011 basicamente referendam os principais marcos normativos já vigentes
na área e os programas e ações que vinham sendo adotados como política
educacional para esse nível de ensino, tanto no âmbito federal quanto em alguns
estados e municípios. No início do parecer, é feita uma síntese das orientações
legais que impactam direta ou indiretamente o ensino médio. As principais
mudanças ressaltadas abrangem a aprovação da lei n.11.741/08, que reforça a
integração entre o ensino médio e a educação profissional, da lei n. 11.494/07,
que garante um financiamento específico a esse nível de ensino por meiodo
FUNDEB e da emenda constitucional n. 59/2009, que assegura a obrigatoriedade de
estudo de crianças e adolescentes dos 4 aos 17 anos.
Com respeito ao contexto político, social e educacional, avalia-se no
parecer das novas DCNEM que o cenário no qual se insere o ensino médio é
distinto daquele existente em 1998, ao vivermos um momento de crescimento
econômico e de mais investimentos na área educacional no país. Contudo, essa
visão contrasta com certa estagnação do ensino médio nos anos 2000,
especialmente em termos do contingente de estudantes que se matricularam e/ou
concluíram esse nível de ensino. A explicação dada no parecer para essa
situação é que teríamos um ensino médio pouco atraente, que não atenderia nem à
demanda de formação para o trabalho, nem à de formação para a cidadania. Ou
seja, em termos da estrutura do ensino médio, esta permaneceria inadequada às
necessidades tanto da sociedade quanto dos jovens que o frequentam, sendo
necessário um currículo menos rígido.
Nesse sentido, apesar de vivenciarmos um contexto político e social
aparentemente distinto, os grandes temas e preocupações presentes no documento
das DCNEM da década de 1990 permanecem os mesmos nas novas diretrizes: a busca
por uma identidade específica para esse nível de ensino; a inadequação de sua
estrutura às necessidades da sociedade; a proposição de um currículo mais
flexível; e a valorização da autonomia das escolas na definição do currículo.
As novas DCNEM apontam como seu objetivo central possibilitar a
definição de uma grade curricular mais atrativa e flexível, capaz de atrair o
aluno para o ensino médio e combater a repetência e a evasão. Nessa direção,
sugere-se uma estrutura curricular que articule uma base unitária com uma parte
diversificada, que atenda à multiplicidade de interesses dos jovens. Vale
ressaltar, por exemplo, o ensino médio noturno e na modalidade de educação de
jovens e adultos (EJA), que tem a possibilidade de organizar 20% do seu
currículo a distância e com menor carga horária diária e anual, mantido o
mínimo total de horas (2.400 horas no caso do ensino regular e 1.200 horas em
EJA). Também o ensino direcionado à população indígena, do campo, quilombola,
de educação especial e em regime de liberdade assistida tem a possibilidade de
uma organização diferenciada, de acordo com a legislação específica. Já no
ensino diurno, reforça-se a possibilidade da educação em tempo integral,
abrangendo um mínimo de 7 horas diárias. Por último, em relação à educação
profissional, é dada ênfase a um currículo que integre a formação de nível
médio à formação profissional.
Contudo, essas possibilidades apresentadas pelas DCNEM-2011 não são
novidades; tanto a LDB de 1996 quanto as legislações posteriores aprovadas em
âmbito nacional já permitiam tal organização. Qual a relevância, portanto, das
novas DCNEM? O que as diretrizes parecem trazer de novo tem menos a ver com o
campo normativo e mais com as políticas de governo, ao trazerem a indicação de
diversos programas do governo federal na área da educação, apresentados como
exemplos para a adoção do modelo curricular proposto.
Destaque-se que há redes escolares com Ensino Médio que já vêm
desenvolvendo formas de oferta que atendem às indicações acima, inclusive com
ampliação da duração e da carga horária do curso e com organização curricular
flexível e integradora. São exemplos desse comportamento as escolas que
aderiram aos Programas Mais Educação e Ensino Médio Inovador, ambos
incentivados pelo MEC na perspectiva do desenvolvimento de experiências
curriculares inovadoras. (Parecer CNE/CEB n. 5/2011-Diretrizes Curriculares
Nacionais do Ensino Médio)
Tais programas do governo federal parecem assumir o papel de definidores
de uma proposta curricular nacional para as escolas de ensino médio. Contudo,
diante da autonomia dada aos estados e municípios pelo nosso sistema
federativo, o tom do texto das DCNEM é muito mais de sugestão e tentativa de
convencimento do que diretivo.
Pretende-se, com os diagnósticos e soluções apresentadas, sensibilizar e
orientar os sistemas de ensino e as escolas, mas cabe a estes decidir se seguem
ou não as sugestões propostas. Ao que parece, a capacidade das diretrizes de
induzir novas políticas curriculares dependerá em grande parte da ampliação dos
programas do MEC e dos recursos disponíveis de modo que se alcance a adesão de
estados e municípios.
Se, por um lado, as DCNEM-2011 não trazem novidades em relação à
organização curricular do ensino médio, por outro é nítida a mudança na
linguagem e nos referenciais teóricos presentes no documento aprovado,
indicando uma sintonia entre o texto das novas diretrizes e as principais
críticas realizadas às antigas diretrizes.
Um primeiro aspecto que vale ser mencionado é a crítica à subordinação
da educação ao mercado de trabalho, muito presente nas antigas diretrizes por
meio da ênfase na necessidade de flexibilização do currículo e na avaliação
baseada em competências e habilidades. Em relação à avaliação com base em
competências e habilidades, esse modelo difundiu-se e é adotado em praticamente
todos os sistemas nacionais de avaliação da educação e também é reafirmado nas
novas diretrizes. Tal proposta aparece associada à preocupação com um excesso
de conteúdos curriculares, visto como prejudicial à organização do ensino
médio. Contudo, essa orientação contrasta com o crescente número de
“componentes curriculares” que hoje, legalmente, devem ser trabalhados no
ensino médio, ainda que não necessariamente no formato de disciplinas: língua
portuguesa; língua materna, para populações indígenas; língua estrangeira
moderna; arte, em suas diferentes linguagens: cênicas, plásticas e, obrigatoriamente,
a musical; educação física; matemática; biologia; física; química; história;
geografia; filosofia; sociologia; história e cultura afro-brasileira e
indígena; língua espanhola; educação alimentar e nutricional; o processo de
envelhecimento, o respeito e a valorização do idoso; a educação ambiental; a
educação para o trânsito; a educação em direitos humanos.
Apesar do considerável aumento no número de “componentes curriculares”
do ensino médio nos últimos anos, mantém-se nas novas diretrizes o discurso da
necessidade de um currículo mais flexível, menos engessado. Ao mesmo tempo, o
termo “flexibilização”, fortemente criticado nas DCNEM de 1998, é agora
substituído pela expressão “diversidade”. Este termo é usado no parecer das
DCNEM de 2011 com múltiplos significados: em alguns momentos, refere-se às
políticas de diferença e identidade cultural; em outros, à variedade de
interesses dos jovens de modo geral; e em várias ocasiões, aparece também como
sinônimo de flexibilização.
O uso da palavra “diversidade” parece surgir no texto das novas DCNEM
como uma tentativa de acomodação de duas concepções distintas de currículo e da
própria identidade do ensino médio. No parecer das DCNEM-2011, o desafio de se
encontrar uma especificidade para o ensino médio não está mais na superação de
dicotomias – como a formação para o trabalho versusa formação para o ensino
superior – por meio da construção de um currículo unificado, mas sim pela
afirmação de uma multiplicidade de significados e trajetórias possíveis de serem
construídas ao longo do ensino médio.
A acomodação de tensões e divergências gerou um modelo curricular que
associa uma base unitária com uma parte diversificada, em que a formação
profissional é apenas mais uma entre as várias formações possíveis:
A
definição da identidade do Ensino Médio como etapa conclusiva da Educação
Básica precisa ser iniciada mediante um projeto que, conquanto seja unitário em
seus princípios e objetivos, desenvolva possibilidades formativas com
itinerários diversificados que contemplem as múltiplas necessidades
socioculturais e econômicas dos estudantes, reconhecendo-os como sujeitos de
direitos no momento em que cursam esse ensino. (Parecer DCNEM, 2011)
Para além das desigualdades sociais que antes diferenciavam o currículo
no ensino médio entre aqueles que teriam de postergar o ingresso no mercado de
trabalho e aqueles que já estavam nele inseridos, as novas diretrizes trazem ao
debate as múltiplas identidades desses jovens e suas distintas realidades
sociais, culturais, etárias etc.:
Tanto
na base nacional comum quanto na parte diversificada, a organização curricular
do Ensino Médio deve oferecer tempos e espaços próprios para estudos e
atividades que permitam itinerários formativos opcionais diversificados, a fim
de melhor responder à heterogeneidade e pluralidade de condições, múltiplos
interesses e aspirações dos estudantes, com suas especificidades etárias,
sociais e culturais, bem como sua fase de desenvolvimento. (Parecer CNE/CEB n.
5/2011 - Diretrizes Curriculares Nacionais do Ensino Médio)
Essa proposta de currículo e identidade definidos para o ensino médio,
que lhe atribuem um caráter tanto unificado quanto diversificado, parece ser a
principal mudança trazida pelas novas DCNEM em 2011, ao mesmo tempo em que seu
maior desafio, especialmente em termos de sua consolidação nas ações efetivas
dos sistemas de ensino e das escolas.
CONSIDERAÇÕES
O ensino médio vem passando por diversas transformações na sua forma de
organização, estrutura, objetivos e currículo, algumas mais amplas, outras
menos perceptíveis. Um aspecto que tem permeado o debate sobre esse nível de
ensino, quase desde a sua origem no Brasil, é a sua própria identidade, questão
que ganha hoje maior relevância. O ensino médio, ao passar de educação intermediária,
situada até então entre a educação obrigatória e a superior, à última etapa da
educação básica obrigatória, parece ser um dos grandes desafios atuais na
formulação de políticas públicas educacionais.
Após uma rápida expansão nos anos 1990, o acesso ao ensino médio tem se mantido
estagnado nos últimos dez anos, juntamente com altas taxas de evasão e
repetência, associadas a um baixo desempenho dos alunos em testes nacionais de
avaliação.
Nesse cenário, a questão da organização curricular, particularmente na
forma das novas DCNEM, reaparece como um aspecto importante para mudar esse
quadro, especialmente na ênfase em uma proposta mais flexível e diversificada
de currículo, que seja capaz de se adequar aos distintos interesses dos jovens.
As DCNEM aprovadas em 2011 inserem-se em um contexto político, social e educacional
distinto daquele vivido na década de 1990; contudo, algumas das críticas
realizadas na época parecem continuar relevantes hoje. Em termos da
especificidade do ensino médio, cabe observar os desafios inerentes à
construção de uma identidade própria aos estudos realizados nesse nível, ao
mesmo tempo em que se garante uma multiplicidade e diversidade de trajetórias
possíveis. Essa questão nos remete, ainda, à possibilidade de construção de um
currículo nacional para o ensino médio e também à indagação sobre onde este
será definido, se por meio de diretrizes curriculares estabelecidas no âmbito
do CNE e do MEC ou se de forma indireta, através de exames e avaliações do
desempenho dos alunos, como parece ser a função do ENEM em seu novo formato. A
capacidade das DCNEM de induzirem novas políticas curriculares, especialmente
nas esferas estaduais e municipais e mesmo nas escolas, é outro aspecto que
merece atenção e maior aprofundamento por parte dos estudos na área,
particularmente diante da questão federativa no país.
Nesse sentido, vale observar, por último, que ainda precisamos ampliar e
aprofundar os debates teóricos nesse campo, com um foco no próprio ensino médio
e nas suas especificidades, que não se restringem à educação profissional, além
de analisar o impacto dessas políticas nos sistemas de ensino e nas escolas,
com mais estudos de base empírica, que talvez identifiquem as ressignificações
e reapropriações feitas nesse âmbito das políticas curriculares formuladas
nacionalmente.
SOBRE A AUTORA
Sabrina Moehlecke é doutora em educação pela
Universidade de São Paulo (USP). Professora adjunta da Universidade Federal do
Rio de Janeiro (UFRJ). E-mail: sabrina.moehlecke@gmail.com
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